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Outros depoimentos

Um homem de jeans e branco

(Marina Antonioni)

 

Alagoas: terra das águas! Assim me dizia o cartaz da empresa turística que me trouxe até aqui. Alagoas: terra da violência e dos marechais! Assim me diziam os amigos e os noticiários em geral. Dentre tantos outros destinos, optei pelo mais contraditório. Hospedei-me na Praia do Francês, no município de Marechal Deodoro. Logo fiquei encantada com as belezas naturais de uma praia tão próxima da capital alagoana que antes de chegar por aqui acreditava que fizesse parte dela.

            Entre um mergulho no mar verde (aqui o mar não é azul como dizem os poetas, é verde!), uma prova da culinária local e uma conversa com o povo hospitaleiro, soube de uma festa literária que estava havendo no centro do município ao qual fazia parte aquele pedaço de paraíso, poucos quilômetros dali. Fiquei curiosa, incentivei os amigos que estavam comigo e, no meio da tarde do sábado, deixamos os prazeres naturais e gastronômicos para ir ao centro de Marechal Deodoro e ver a tal festa.

            No caminho pude ver muitos habitantes locais sentados às portas das casas ou mesmo às calçadas das igrejas, debaixo da sombra, para conversar. Meus amigos e eu (éramos um grupo de quatro) estranhamos haver uma festa ali e a população ser tão alheia. Paramos para pedir informações e nos disseram por onde seguir. Ao avistarmos o local do evento, haviam muitos carros estacionados, mas o fluxo de pessoas ainda era pequeno. Entramos, pegamos um folheto com a programação e vi que, pelo horário, era Laurentino Gomes (autor dos vários Mil Oitocentos...). Mas havia um atraso na programação: Janaína e Paloma Amado ainda estavam contando histórias sobre Jorge Amado, histórias pessoais, que me fizeram querer conhecer ainda mais o autor (a próxima viagem será à Bahia de Todos os Santos e de Jorge Amado).

            Busquei novamente a programação e nos encerramentos havia um título que chamou minha atenção: “Djavaneando Ledo”. Sabia que a festa era em homenagem a Djavan, que os presentes nos informaram ter estado lá no dia anterior, mas quem seria aquele Ledo? Djavanear é um verbo que só deve ser conjugado sozinho! Como tiveram a petulância de colocar um tal de Ledo para ser Djavaneado? Li o nome do apresentador: Ricardo Cabús, e resolvi esperar para ver o que era. Não mais a fala de Laurentino Gomes, Marina Colasanti ou até mesmo o ministro do turismo me prendiam. Fiquei ali para ver quem tinha a ousadia de querer Djavanear outro!! Aguardei, expondo a meus amigos a indignação pelo título da “homenagem”. Eles caçoaram de mim, da minha paixão pública por Djavan.

            O auditório ficou cheio para ver Laurentino Gomes, logo depois esvaziou consideravelmente. Alívio para minha ansiedade: Marina Colasanti não estaria presente. Passaram logo à próxima mesa:o ministro do turismo, o mediador da mesa era alguém que também fazia parte do ciclo político da região. Parecia um tema infindável. A plateia resolveu opinar. O tempo parecia não passar. Minha angústia aumentava. Resolvi levantar e sair dali um pouco, quando cheguei à porta do auditório vi um homem de jeans e camisa branca falar com algumas pessoas, dizendo que o show começava em poucos instantes. Resolvi voltar ao meu lugar para não perder. O tempo voltou a arrastar-se. O ministro falava, o mediador da mesa falava ainda mais. Busquei o telefone, tentei distrair-me com as redes sociais, respondi algumas mensagens. Mas a audácia da pessoa que resolveu misturar Djavan com quem quer que fosse não saia do meu pensamento.

            Meus amigos escutavam o que estava sendo dito, algo sobre passeios culturais em Maceió que as agências de viagens não promovem, e comentavam entre eles. Eu estava dispersa da conversa deles, escutava uma ou outra fala. Um grupo de jovens, cerca de seis ou oito, pareciam moradores locais, entrou e sentou próximo a mim. Dois dos garotos utilizavam fones de ouvido e outro tentava entoar Pablo enquanto uma das meninas arriscava um passo de dança. Invejei os fones deles, quem sabe não me serviriam de distração?

            O auditório voltou a encher. Quase lotou. O ministro terminou sua fala. A apresentadora do evento pedia que, ao terminar a mesa, todos voltassem aos seus lugares para a programação ter continuidade. Parecia que os presentes não a escutavam. Ela pede silêncio e ordem diversas vezes. Na última vez, faz uma brincadeira, dizendo que estava descobrindo como se sente um professor em meio a uma sala de aula em que os alunos não “obedecem” aos comandos dele. Ela anuncia que Djavan estará na plateia. Meu coração, antes triste por não tê-lo visto no dia anterior, dispara. Djavan sai das coxias. Meus olhos chegam a lacrimejar. Meus amigos brincam comigo. Um ídolo de tantos anos ali, tão próximo, três fileiras à minha frente.

            O cara de jeans e camiseta branca, que eu ouvi falar sobre o show, sobe ao palco. É o apresentador: Ricardo Cabús (através do pouco que prestei atenção na fala do ministro do turismo, e que desdobrou-se em elogios a ele, descobri que é um poeta local e faz um bonito trabalho com saraus para divulgar a poesia em geral). Ele diz que o “tal do Ledo” é Lêdo Ivo! Eu me envergonho intimamente de não ter percebido antes (mas, coloco a culpa da minha distração em não perceber antes na ausência do acento na impressão da programação), e reconsidero minha indignação, transformo-a apenas em curiosidade. Lêdo Ivo está à altura de Djavan (ou será que Djavan está à altura de Lêdo Ivo?). O apresentador declama o primeiro poema, fico arrepiada com a emoção que ele dá ao texto. Os garotos que estavam com o fone de ouvido, retiram os fones e prestam atenção. Pablo já não é mais cantado nem dançado. Silêncio pleno no auditório. Todos estão embevecidos com a voz do cara de jeans e branco e o som de três músicos: dois violões e uma gaita. Os músicos entoam canções de Djavan apenas com os instrumentos. Há uma alternância entre poema e música instrumental. Meus amigos parecem surpresos.

            O público aplaude a cada poema declamado, a cada música tocada. Esqueci Djavan três fileiras à minha frente. Deixo as “rosas vermelhas” de Lêdo Ivo me envolverem, chego a ter uma sensação sinestésica entre voz, imagem, sentido e perfume de rosas, rosas vermelhas apenas. Só os aplausos me tiram dessa viagem sensorial.

            O último poema é anunciado, a amiga que estava comigo declama-o baixinho, acompanhando a voz do cara de jeans e branco. Eu recrimino-a mentalmente por distrair-me dessa forma. Mas logo volto ao clima e escuto apenas a voz dele.

            Finalizado o show, o público aplaude, volto-me aos amigos e vejo na expressão de todos a mesma sensação de satisfação que a minha. Saímos de lá encantados, cheguei a esquecer de tentar ir ao camarim de Djavan. Já não importava mais, queria prolongar a sensação de prazer que poemas e músicas me proporcionaram. Resolvi transcrevê-las, para que perdurem a cada leitura, antes de voltar aos peixes e ao mar.

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